
A culpa na masturbação: um dilema desde a infância
Lembro-me até hoje da culpa que eu sentia, no final da minha infância e no início da minha adolescência, quando praticava a masturbação. Primeiro achava que aquele “fenômeno” de prazer só acontecia comigo. Como era muito bom, obviamente queria repetir sem parar. O problema veio quando, numa palestra da escola, o padre convidado disse que praticar aquilo – e ele deu o nome que eu não conhecia – masturbação - era “anormal”. Apenas a polução noturna era algo natural (quando se goza, espontaneamente, durante o sono).
Depois foi minha mãe que começou a me dizer que eu deveria parar de praticar o ato, que não era bom, sem explicar muito porquê. O resultado disso foram anos de suplício entre o desejo incontrolável de repetir aquilo – de forma escondida – e os malabarismos tentados para evitar aquela forma de prazer solitário tão boa, incluindo promessas a Deus de que nunca mais cairia em tentação. Pode-se imaginar que fracassei em todas elas e ainda me sentia o pior dos pecadores!
A Revolução Sexual e a persistência da culpa inconsciente
Assim, quem achou que a Revolução Sexual, do final do século XX, iria libertar-nos completamente dos tabus em torno da sexualidade, enganou-se redondamente. É verdade que avançamos no tema, que hoje provavelmente haja menos repressão do que houve no passado e mais liberdade para se falar de sexo e para vivenciá-lo.
No entanto, como argumentou Foucault[1], a sexualidade continua atrelada a formas de distribuição de poder e de prazer em nossa sociedade, apenas sob o disfarce de maior "liberdade".
E se há uma de suas expressões que continua, muitas vezes, assombrando mulheres e homens, é a masturbação. Historicamente condenada por religiões de matiz cristã, recebeu algum alívio moral quando Freud[2] e alguns de seus discípulos, como Ferenczi[3], a colocaram como parte do desenvolvimento normal da criança, dentro do conceito de autoerotismo.
O discurso da confissão e o controle sobre o prazer
Porém, mesmo Freud[4] e Ferenczi[3] patologizaram a prática quando realizada por adultos, associando-a a sintomas neuróticos e fixações infantis, especialmente se fosse feita de forma compulsiva ou em substituição a relações sexuais com um parceiro. Foucault[1] denunciou que a ciência e a vontade de saber sobre a sexualidade, a partir de Freud, passaram a ditar os modos como poder e prazeres são distribuídos.
Tornamo-nos uma sociedade “confessante”, diz ele – confessamos crimes, pecados e desejos. A masturbação é apenas um desses elementos, mas, ao que parece, ocupa um lugar especial. Se antes confessávamos aos padres e pastores o "pecado" de termos nos masturbado, hoje fazemos o mesmo aos psicanalistas, psicoterapeutas e psiquiatras.
A confissão tornou-se um mecanismo de controle e normalização: funciona para moldar os indivíduos dentro de normas socialmente "aceitáveis". Ela internaliza o poder das instituições (família, igreja, escola, etc.), sendo eficaz mesmo na ausência de uma autoridade visível, já que os próprios indivíduos passam a se policiar.
A culpa na masturbação e o ideal de produtividade
Escuto de alguns pacientes a “confissão” da masturbação – atormentados pela culpa (religiosa ou não), ao buscarem o prazer sexual solitário, por não conseguirem se livrar da prática. Querem que eu os condene, não do ponto de vista religioso, mas do ponto de vista psicológico (mesmo aqueles que sofrem de culpa de cunho religioso, assombrados pela consciência de que "masturbação é pecado"). Desejam encontrar um meio de abandoná-la para se dedicarem a atividades "mais produtivas".
Fica claro não só um discurso moral subjacente, mas também uma ideologia neoliberal da “produtividade” – quem gasta tempo com prazer solitário perde tempo precioso para produzir e aumentar o capital de quem o tem.
O "vício em dopamina" e a nova condenação da masturbação
Contudo, nos últimos anos, o discurso que tem aumentado a tormenta de quem tenta gozar sozinho é o das neurociências. Publicações médico-científicas passaram a advertir sobre os supostos perigos do “vício” em dopamina [5] [6].
Segundo esses estudos, o prazer imediato e fácil advindo da masturbação e do consumo de pornografia, entre outros, tenderia a nos tornar mais infelizes, no fundo. Sob outra roupagem que não a confessional, novamente escutamos, em certa medida, agora dos neurocientistas: “masturbação faz mal!”.
Não questiono que estamos nos tornando uma sociedade da busca pelo prazer imediato e constante, que um desequilíbrio no sistema dopaminérgico possa resultar em maior infelicidade.
Também não questiono que os modos de produção de filmes pornográficos e de sites de sexo ou de masturbação online possam ser um tanto quanto massacrantes, inseridos que estão num sistema capitalista que quase sempre pouco se importa com os meios para atingir os seus fins.
No entanto, questiono se essa demonização da masturbação realmente contribui para o bem-estar das pessoas.
Mesmo nos casos em que ela adquire contornos de compulsão, de mecanismo de defesa contra angústias diversas, de sintoma psíquico, ainda assim ocupa um lugar importante para os sujeitos, tem um sentido para eles, sentido que podemos, como terapeutas, psicólogos, psiquiatras, ajudá-los a compreender e dele se apropriarem, da forma que melhor lhes aprouver e lhes for possível.
Masturbação: dá para ter prazer sexual solitário sem culpa?
Vivemos em um mundo repleto de estímulos o tempo todo, o que está mudando nossa forma de sentir prazer e dor. Anna Lembke [5] provavelmente tenha razão – somos uma "nação" dopamina. Contudo, não sei se isso vai mudar com prescrições, mesmo que supostamente bem intencionadas e ancoradas no discurso da ciência.
E dá para ter prazer sexual solitário sem culpa? Como parar de sentir culpa ao se masturbar?
É preciso dizer que homens e mulheres, de qualquer idade, vão continuar se masturbando e gozando com isso. Quando há culpa, isso indica que existe um conflito envolvido, tipicamente inconsciente, e que, possivelmente, o gozo ocorre também por certa “proibição” da prática [7] (agora na forma de contraindicações das neurociências, além das condenações religiosaas).
Poder compreender isso e entrar em contato com os medos, com as angústias mais profundas e com a fantasia inconsciente de cada um que estão por trás do conflito em questão costuma abrir caminho para um gozo mais livre e menos sofrimento desnecessário.
Mesmo que, como nos advertiu Foucault[1], a "confissão" de desejos aos psicanalistas, terapeutas e psiquiatras seja um mecanismo de distribuição de poder e de prazer na sociedade, tanto quanto a confissão a padres e pastores, que ela pelo menos sirva para a diminuição do autopoliciamento das pessoas e para um prazer menos atrelado ao sofrimento (já que, em tantas outras esferas da nossa existência, ele será inevitável).
Portanto, se é para dar alguma prescrição, a minha é a de que as pessoas possam gozar consigo mesmas em paz!
Obs.: Agradecimento especial a Marco Antonio Claro Santos, que revisou a primeira versão do texto.
Referências
[1] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guillon Albuquerque. 7ª. ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2018.
[2] FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Completas, volume 6 (1901 - 1905). Tradução Paulo César de Souza. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Trabalho original de 1905).
[3] FERENCZI, Sándor. Apresentação sumária da psicanálise. In: Obras Completas - Psicanálise IV. 2ª.ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2011.
[4] FREUD, Sigmund. O debate sobre a masturbação. In: Obras Completas, volume 10 (1911 - 1913). Tradução Paulo César de Souza. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Trabalho original de 1912).
[5] LEMBKE, Anna. Nação dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar. São Paulo: Vestígio, 2022.
[6] LIEBERMAN, Daniel Z. Dopamina: a molécula do desejo. Rio de Janeiro: Sextante, 2023.
[7] LACAN, Jacques. O Seminário livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. (Trabalho original de 1962-63).
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